ABDULLA, Kamal. O Manuscrito Inacabado. Tradução Humberto Luiz Lima de Oliveira. João Pessoa: Ideia, 2009, 230 p.

Leila Bijos[1]

            A obra O Manuscrito Inacabado, do renomado escritor Kamal Abdulla, me foi repassada no meu período como Professora Visitante do Baku International Multiculturalism Centre, Azerbaijão, durante os meses de julho e agosto de 2018. Como já estava desenvolvendo uma pesquisa que abrangia o desenvolvimento histórico e econômico do país, adentrei em novas facetas históricas, na cultura deste rico país, com suas lendas milenares, seus povos multiétnicos isolados em Qabala, Shaki, Ismailly, cidades situadas no Norte do Azerbaijão. Em Shaki encontra-se o monumental Palácio dos Shaki Khans, construído em 1797 por Muhammed Hasan Khan, que tive o prazer de visitar, onde se passa este fascinante relato do Manuscrito Inacabado.

O manuscrito foi catalogado como obra medieval, século XII, do Instituto dos Manuscritos Nacionais, em Baku, com o número A21/733, e relata o terremoto de Grandja, que dizimou a população local, razão pela qual perdeu-se parte do texto, queimado pelas chamas. Aproveitando-se do caos que se instalou na cidade, as forças armadas georgianas entraram na cidade, e impiedosamente, saquearam tudo que encontraram pela frente, em meio aos cadáveres putrefados.

Este ato de profunda crueldade e insensatez será investigado por Bayandir Khan, o Khan de todos os Khans, que não se esquivou de enterrar os seus mortos, restaurar a ordem citadina, e iniciar um processo esmerado para descobrir quem foi o espião que enganou seus companheiros, divulgando os segredos de Estado ao inimigo, uma situação complexa e aterrorizante. Na verdade, no dia que Salour Cazan decidiu deixar o Palácio dos Shaki Khans para caçar, a informação foi repassada para o inimigo de que era o momento propício para invadir a cidade e saquear a região Oguz. O que não se esperava, era que o terremoto acontecesse enquanto o inimigo atacava a cidade em chamas, com a população sobrevivente aterrorizada, perplexa ante fatos tão sinistros.

Difícil restaurar a ordem e a paz em meio ao trauma do terremoto, e da invasão dos inimigos. A situação tornou-se mais densa quando Beyrek se preparava para casar-se, e o espião novamente apareceu, sequestrou-o, entregou-o a Baybourd, seu odiado rival, que fez dele seu refém por dezesseis longos anos. Cazan decidiu captura-lo para que novos incidentes não ocorressem.  A captura do espião ocorre de forma rápida e precisa, mas os problemas estavam apenas começando. Alguém de forma misteriosa, resolve afrouxar os grilhões do espião e ele escapa sem deixar rastros.

Bayandir Khan ficou estupefato com as notícias da fuga do terrível espião, e indagou: – porque não o aniquilaram? Ele deveria ter sido cortado em pedaços para servir de exemplo para os desejosos de traição. Sua cabeça deveria ter sido cortada e apresentada em praça pública para os cidadãos. Seu corpo esquartejado e pendurado em um poste para ser devorado pelos lobos e abutres. Mas, alguém o deixou escapar, enganando os guardas e libertando-o. Seria Cazan o responsável pela soltura do espião? Ele foi brando e dócil como um pássaro preso nos espinheiros?

É difícil confessar um crime, e o nome de Aruz saiu muito a contragosto da boca de Cazan. Aruz Qodja era seu tio por parte de mãe, conhecido como “boca de cavalo”, e responsável por todas as desgraças que se abaterem sobre aquele próspero reino. Havia uma rejeição instintiva entre eles, razões visíveis e invisíveis que mostravam um ódio profundo que se instalara na convivência entre os dois.

Aquele tinha sido um período muito difícil para os Oguz. Uma tribo desconhecida tinha chegado, instalou-se na embocadura do rio de Selemme (chamado Bouzlousel), tomando seu nascedouro na montanha de Qaziliz, montanha do pico nevado, desviando suas águas, e lutando ferozmente para permanecerem para sempre naquele lugar. Ninguém era capaz de compreender a língua dessa tribo e saber o que queriam. Cazan foi enviado com seus soldados, para negociar com o chefe deles, um homem caolho, magro e baixinho. Foi recebido de forma hostil por aquele indivíduo repulsivo, asqueroso, que parecia querer devorá-lo vivo. O suor descia de sua testa e seus pés ficaram pregados no chão, enquanto apertava a Pedra de Luz contra seu coração, suplicando ao Senhor que o permitisse retornar com vida ao seu povo. Através de um intérprete que conhecia sua língua, solicitou que interrompessem o desvio da água, com a condição de permanecessem no local. A resposta grosseira de Tekgöz, o chefe monstruoso, foi que “a cada dia lhes dessem dois homens e cem ovelhas”. Se não aceitassem as condições a tribo de Oguz seria invadida e aniquilada.

– Por que precisais de dois homens a cada dia? – perguntou Cazan.

– Nós comeremos as ovelhas, e o coração dos homens será para nosso chefe, disse o tradutor olhando para Tekgöz com ternura.

– “Ora essa, mas são canibais”, disse Cazan a si mesmo, e pediu permissão para partir.

– Parte, disseram eles, mas, amanhã, se não fizerdes o que exigimos, isso significará que não tem acordo algum. E será por vossa culpa.

Cazan partiu lívido e preocupado, para levar a notícia aos beis, que zangados, puseram-se a refletir.

As consequências deste terrível acordo se revelaram nefastas para o povo de Oguz, que além das cem ovelhas, enviavam dois homens todos os dias, e sofriam com o desvio da água. As mulheres e crianças passaram a mendigar água, até que Qiyan prontificou-se a combater Tekgöz. Mas, a fúria do canibal Tekgöz e seus guerreiros, estremeceu Qiyan no campo de batalha onde morreu arrasado pelo medo, enquanto o exército se punha em fuga.

 A sequência dos fatos mostra que em algumas partes, o manuscrito está ilegível. Como entender todos os acontecimentos se o texto está cortado? Como descobrir por quê o espião foi libertado e elucidar a verdade sobre quem traiu o Xá? Desvendar este caso de espionagem é o cerne da obra, que revela com suspense toda a história do povo Oguz, sua luta por paz e desenvolvimento, como um conto de fadas que nos leva para o mundo mágico dos povos multiétnicos do Azerbaijão, e a corte do Xá Khan em Gunortadja, onde o esplendor dos jardins, fontes e pássaros se misturava às vozes dos embaixadores que chegavam em caravanas, de terras longínquas para negociações políticas. É um romance esplendoroso em seu relato pungente de histórias, traições e emoções.